22/10/2007

Parece que o sol resolveu sair para expiar o dia. Acho que o vi sorrindo. Não sei bem se era sorriso ou simples repouso de lábios, um sobre o outro, de forma descomplicada e serena. Quem ouvira o som falara até em gargalhadas. Não sei. Talvez o som fosse simples som de alegria, que sai da boca sem nem precisar sorrir. Simples assim. Parece que as palavras não tangenciaram essa coisa de alegria, de precisar sorrir para estar feliz. De fato o sol estava. Se ele sorria ou gargalhava, não sei. Não importa. Só sei que se expandia nele uns raios que vibravam, uns sons, uns movimentos de lábios, umas contrações na região do abdome. E o rosto se iluminava como nunca. E ele iluminava como nunca.

17/10/2007

Em memória de minha mãe

Paira uma nuvem no calçadão da praia. Nunca mais fez sol. Aquele mar em que as ondas batiam faz que não percebe. Eu também. Pouco importa se faz sol ou chuva, ou tempestade, ou canivetes. Paira uma nuvem no calçadão da praia. As pernas não acham sustento para andar. Quem dirá correr. As pernas não querem mais nada. Também os braços, os abraços, as palavras. Elas em especial sentem falta do ouvido. Sentem falta de sair fluindo de intimidades em intimidades, em perguntas, em conselhos. Elas só buscam aprovação. As mordidas nas bochechas, os "você sabia que eu te amo?", "Lindinha"...
E o que sobra são memórias. E o que sobra é fugidio. E o que sobra já se foi.

16/10/2007

pensar nas palavras
uma outra língua
a percorrer os sentidos
no interior dos lábios

suaves sensações verbais
lambidas a cada vírgula
em cada ponto
virando salivas

exclamando-se chega
no parágrafo esperado
onde as reticências volumosas
se interrompem em um suspiro:
Que língua é essa?

15/10/2007

Os olhos

Passeiam unidos, percorrem objetos gerados
pelo desejo movente a cada instante
o desejo de ver e ver e ver e desejar objetos
que movem. Eles se movem.
Inquietos.
Vez ou outra páram,

fecham,

respiram,

se acalmam

se fecham.


Num instante é um turbilhão de luzes e sons que viram imagens e imagens que viram água e que escorrem e que escorrem pelos dois, molhando a face e deixando-os vermelhos, eles vermelhos de tanta água.

Ah, quando eles se abrem...
eles fazem mover o corpo inteiro pra ver outros olhos.
Eles querem ver olhos o tempo inteiro.

Primeiro os olhos,
depois a boca.
Mais abaixo,
é o que vier...

E tudo se torna um paraíso.

08/10/2007

Ela despejava suas intensidades em um teclado de um computador e se escrevia em terceira-pessoa. As suas intensidades vazavam pelos seus poros e a faziam passar vergonha (aos olhos dos outros, sempre). Ela não se importava. Ela não se importava se os seus escritos se repetiam, ou repetiam-se as palavras. Ela simplesmente fluía de um desejo de desejar alguma coisa, algum objeto. Sua terceira-pessoa não sabia quem era. Nem a primeira-pessoa. Faltava uma segunda-pessoa, ela pensava. As suas intensidades procuravam vazão, não encontravam um objeto e então criavam um: palavras. Ela pensa que é melhor assim. Uma segunda-pessoa poderia trazer um eu-tu problemático. Uma segunda-pessoa poderia deixar o eu. Uma segunda-pessoa poderia fazer o eu se tornar ela. Novamente.

03/10/2007

a casa

as fotos em branco-e-preto nos porta-retratos
eram bisavós e tios na mesinha de canto
comiam os cupins algumas brechas
o resto permanecia intacto

as flores foram as primeiras
resolveram se ausentar dessa nova fase
direito de escolha: morreram
guardaram a lembrança os vasos e a terra

móveis de madeira e vidro
os quadros na parede convivem
não mais a mesa espera posta
nada mais espera, é verdade.

faltou aquele projeto de futuro
que se instalaria no corredor da sala
no mais, tudo repousa limpeza
a janela fechada, a porta muda.
a casa permanecia a mesma e mesmo assim assustava.
Navegue-me, por favor.