14/12/2008

Das coisas que me tocam

Das coisas que me tocam,
posso,
com toda clareza, precisão e objetividade
(quiçá até referências teóricas e bibliográficas)
falar somente de uma:

Este tecido de seda estampado que neste momento eu visto.

De resto é língua morta, pois que não comunica senão a mim mesma.

07/11/2008

Do amor

O amor me parece como uma imensa sala vazia onde
Vão chegando os convidados.
São tantos convidados, tão distintos e tão dispersos,
Que você nem se lembra de tê-los chamado pra festa.

Da lágrima

Parede nua
das cortinas abertas vê-se os refletores
,esqueleto de arquitetura,

que iluminam igualmente as paredes
cada raio de luz uma trajetória
de uma lágrima
elas formam linhas paralelas
dançam no ar
vê-se o chão e o teto
os refletores iluminam as paredes
como glândulas deste imenso corpo arquitetônico
como pingos de metal elétrico
como um bisturi cênico
como uma dissecação
da anatomia da casa da face
da anatomia da casa da alma.

08/09/2008

- Saber que está falando de si não te encomoda?
- Não falo de mim. Falo dela.
- Quem?
- Ela que um dia foi, ou será, ou seria... não se sabe.
- O que se sabe?
- Sabe-se que ela gerou uma vida. E isso não foi suficiente. Ela gerou duas vidas. E ainda queria mais.
- Gerar mais vidas?
- Ela queria gerar a própria vida.
Eu saí na rua, fui esfriar a cabeça. Ela esfriou tanto a cabeça que gelou as idéias. Hoje tento recuperar as memórias, descongelar o coração que também sofreu.
- E ela ainda queria mais?
- As vidas que ela gerou. Ela se preocupa muito. Demasiadamente. Não há de quê. Não por isso. É uma preocupação de mãe. Ela não acaba, não sabe a hora de parar, calma, está tudo bem, vai ficar tudo em paz, eu estou cuidando, vai que eu te seguro, estou de olho, estou esperando. Vai voltar que horas?

25/02/2008

Diálogo de eu para eu

eu- Também pudera!
eu'- Sob esta ótica você até poderia ser mais racional...
eu- Como?
eu'- Assim como dois mais dois são quatro, sabe? Ou não?
eu- Ah... talvez seja quatro mesmo...
eu'- Falo de objetividade. Clareza. Traçar objetivos e seguí-los.
eu- ...sim, sim, eu entendo...só não consegui entender até agora onde é que entram os números.
eu'- eles não precisam necessariamente serem levados em conta. É só um exemplo. Uma forma de tornar as coisas mais didáticas. Você não prefere assim?
eu- Gosto de didatismo.
eu'- Viu, está funcionando! Uma sentença dita com clareza! Objetividade!
eu- Tá, amanhã eu juro que vou pensar melhor nisso... vou escrever frases no chuveiro para quando eu estiver tomando banho lembrar da clareza...vou também fazer um desenho e uma musiquinha...que assunto interessante este da clareza, não? É, tem tudo a ver com objetividade...
eu'- Amanhã você o quê??
eu- Eu?

18/02/2008

São minhas, são minhas sim - eu dizia - as palavras. Eu as desformei, informei e depois formei. Todo este processo claramente não é percebido. Pois assim deveria. Mais do que o produto que eu vendo através de minha veludosa voz, mais do que as pontuações clinicamente estudadas e o tom didático - muito em parte por uma distinção rítmica - e os silêncios.

Os silêncios, como pôde ser observado, compõem uma atmosfera de interesse e de admiração.
Aí vem a novidade: que os silêncios querem dizer vazios. Nenhuma outra coisa senão vazios.
Não, não é por não saber a melhor forma de dizer algo. Não.

Novamente, como pôde ser observado, os silêncios denotam a falta do que dizer.

31/01/2008

beber toda essa vida, essa alegria
transformar este chá de vida em camomila, em hortelã
dar gosto de canela às coisas, sabor à vida

pra quê mais?

Um copo d'água
e a mente doce.

o resto é só o sal do mar.

25/01/2008

minha vida (a outra)

um dia, um telefonema, um choro, uma decisão.
uma discussão, um porta batida, uma batida na porta, um não.
um dia, uma praia, uma chuva fraca, um convite, um não.
um banho, um chuveiro, um...

um carro, uma trajetória, um trabalho.
um telefone, um telefone, um telefone, um telefone.
um choro, um choro, um choro, um choro.

Uma notícia:
foi lá, no chuveiro
....

15/01/2008

Os dois sabiam que aquilo era um reencontro. Faziam força para se lembrar de onde, de quando, como, em que situação, em que ocasião e mais essas coisas que se apagam da memória na passagem das vidas. Aquele sol já havia borrado as bochechas dela. Ele a viu passando pelo calçadão, ele estava sentado lá pensando na vida, na vida dele, e se preocupou com ela que não havia dormido à noite, mas que estava já àquela hora ali frente ao mar. Os olhos se cruzaram e se perguntaram de onde. Ela continuou andando. Parou. Mas de onde mesmo? Andou. Parou. De onde mesmo? Parou. Ele se perguntando de onde surgira aquela mulher de vestido. Ela se perguntando se havia sido a noite, o sol, os anjos, Iemanjá... Ele a perguntou de onde. De onde? Daqui mesmo. Brasil? Sim, planeta Terra. Aquela mulher entrou na vida dele e ele não sabia mais de onde. Ela entrou na vida dele sem se saber como. Os dois entraram em suas vidas, um na vida do outro, como se quisessem saber por que uma pessoa entra na vida da outra. Ele estava ali. Ela também. E se respondiam a cada dia. Todos os dias. E os olhos continuavam a se perguntar de onde. A cada dia.
Navegue-me, por favor.